Daniele Vilela Cardoso Leite*
Final de ano é tempo de festas, comemorações. Momento de fechar um ciclo de vida para iniciar outro. Época de transformações, fechamento de etapas. Brinda-se a vinda de Cristo a este mundo, e celebra-se rituais em torno deste acontecimento.
Um deles é a troca de presentes. É uma hora oportuna para presentear a quem marcou positivamente durante o ano, já que o presente é uma forma material de demonstrar sentimentos bons.
Dar e receber presentes é delicioso. Só é preciso ter cuidado para não embarcar na euforia que o contexto gera, inclusive pela movimentação financeira destes dias. Gira muito dinheiro no comércio e o apelo para que o consumidor aumente seus desejos e tenha “sede” de consumir é imenso. Consumir, mas com visão crítica. Isso é o importante. Drummond fala de maneira interessante sobre isso:
“Eu, Etiqueta” – Carlos Drummond de Andrade: “Em minha calça está grudado um nome que não é o meu de batismo ou de cartório, um nome… estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida, em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produtos que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu antes que era e me sabia tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante, sentinte e solitário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio ora vulgar ora bizarro, língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente.) e nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou ? vê lá ? anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente”.
Tirar proveito dos benefícios do mundo moderno, que nos oferece tantas vantagens e conforto, é fazer por onde viver bem, é estar evoluindo. Mas é bom lembrar que o senso crítico é essencial para diminuir a manipulação em torno dos nossos desejos. Ao nos perguntarmos o porquê das coisas, ao nos questionarmos sobre a política, os valores, o sentido da vida, ao tentarmos enxergar o que há por trás das intenções dos marqueteiros, dos comerciantes, estamos instigando nosso senso crítico.
Às vezes pessoas que se dizem atéias, ou não vão à igreja, não acreditam em Cristo, comemoram o Natal, que é a vinda do Menino Jesus. É fácil comemorar porque todos estão fazendo isto. Mas é melhor ainda quando comemoramos, nos presenteamos, festejamos, com consciência. Assim é muito melhor, mais gostoso…
*Daniele Vilela Cardoso Leite é Psicóloga, professora de Yôga e colunista do jornal Acontece (Caeté-MG) de 1999 a 2017, quando foi encerrada a circulação da edição impressa.